sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Uma Crônica Portuguesa com certeza

Lembro que em algum momento cheguei a pensar sobre isso. Sobre como eu - que tinha me perdido de madrugada em Haia, levado um fora no inverno de Milão depois de um passeio de lambreta, tido a mala extraviada na África do Sul, chegado a Osaka numa noite chuvosa, desembarcado em Seul numa manhã inóspita de abril, ido a São Petersburgo três dias depois do 11 de setembro - podia não dominar uma simples ida a Portugal com duas crianças pequenas.

Nosso avião pousou em Lisboa às cinco da manhã. Hora local. Para nós eram três da madrugada. Primeira viagem internacional com os dois pequenos.

O mais velho dormia profundamente. A caçula precisava ser trocada, o que foi feito às pressas ainda no avião. Nós dois, zonzos de sono, carregávamos muito mais malas de mão do que efetivamente precisávamos.

Saimos do avião cada um com um filho, os dois cheios de malas, carrinhos e casacos pendurados. Felizes com a chegada e a proximidade dos amigos, caminhamos pelo aeroporto de Lisboa. O filho desmaiado no carrinho, a filha no canguru quietinha. Quase um milagre.

E eis que chegamos à fila da imigração. Olho à minha volta, procuro e não vejo a bolsa preta de couro, comprada para a viagem, onde havia guardado não apenas os quatro passaportes mas também algumas jóias e a metade do nosso dinheiro. Com o coração na boca olho pro meu marido e, gelada, me dou conta de que a bolsa havia ficado no avião.

Em poucos segundos reconstitui mentalmente o que tinha acontecido. Na correria para sair do avião pegamos tudo do nosso compartimento menos a minha bolsa, que não estava lá. Havia sido reacomodada pela aeromoça em outro compartimento minutos antes da aterrissagem.

Nos dirigimos a um balcao da companhia aérea e explicamos o que tinha acontecido. O português que nos atendia reagiu tranquilo nos dizendo com seu lindo sotaque que não havia problema. Deveríamos passar pelo controle de passaporte e, então, nos dirigirmos ao Achados e Perdidos.

Isso não vai ser possível. Os passaportes estão dentro da bolsa. O português nos olhou desorientado. Acionou alguém no rádio pedindo que fosse até o avião para recuperar a bolsa. Nessa altura, como que por encanto, dormiam os dois pequenos. Um no carrinho, outra no canguru.

Nosso amigo querido, que havia acordado de madrugada para nos buscar, devia estar lá fora sem entender por que motivo não aparecíamos. Pois é. O celular também estava na bolsa. Não dava para ligar e explicar a situação.

Enquanto o português se comunicava no rádio convenci meu marido que fizesse o caminho de volta e tentasse entrar no avião. O aeroporto de Lisboa não era grande, achei que valia a pena. E eu fiquei ali, naquele terminal, na manhã do dia 24 de dezembro com um filho dormindo no carrinho, outra no canguru, sem dinheiro, sem passaporte, sem saber o que fazer.

Olhei à minha volta e só então vi que o pequeno terminal estava cheio de pessoas aparentemente acampadas por ali. Os primeiros quinze minutos em que fiquei ali esperando a resposta do português e o resultado da expedição do marido foram suficientes para que eu  entendesse o que acontecia. Eles haviam vindo num vôo e perdido a conexão. Muitos não tinham visto e, por isso, não podiam sair dali para um hotel para esperar o vôo do dia seguinte.

Me dei conta de que caso a minha bolsa não fosse encontrada nós também não poderíamos sair dali e fiquei a imaginar com seria a nossa noite de natal.

O avião estava fechado. Fomos novamente ao balcão para saber como evoluíam as coisas. Muita gente na frente do balcao, brigas entre um grupo de africanos e a policia do aeroporto.

Depois de cerca de duas horas de uma espera torturante, as duas crianças milagrosamente dormindo, avistamos duas pessoas uniformizadas carregando a minha bolsa. Um policial e um funcionário do aeroporto. Nos dirigimos todos para o tal balcão. O policial me entregou a bolsa solenemente e me pediu que verificasse se estava tudo como eu deixei. Abri a bolsa com um certo receio e um pouco contrangida. Para minha surpresa estava tudo absolutamente intocado. Os quatro passaportes no compartimento lateral com zíper, todo o nosso dinheiro, minha modestas mas queridas jóias. Me pediram que eu assinasse um papel. Agradecemos muito e seguimos então para o controle de passaporte. Pegamos as malas já estacionadas ao lado da esteira e, finalmente, saímos ao encontro do nosso amigo que, mesmo depois de duas horas de espera, sorriu feliz ao nos avistar cruzando a porta automática.

As criancas acordaram logo depois. Seguimos de carro para Cascais. E ao avistar Lisboa surgindo no horizonte respirei aliviada, uma mão pousada em cada filho, me reassegurando de que estava tudo bem e de que a viagem seguiria em paz.

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