sábado, 16 de abril de 2011

Petshop

Foi mais ou menos assim. Numa rua do Centro do Rio, no sede do sindicato. Era uma tarde de verão daquelas nubladas. O céu pesado. Ela foi assinar a rescisão do seu contrato de trabalho. Tinha sido desligada. Da parte dela um misto de alívio e desconforto.

Marcaram às duas da tarde. E lá estava ela com os documentos embaixo do braço aguardando a sua vez. Um prédio qualquer, uma sala mal ajambrada na sobreloja. Um balcão dividindo o espaço. Tudo à sua volta era marrom.

Do outro lado do balcão uma moça, um rapaz e a tal senhora.  Pelo que ela pôde perceber a moça estava questionando horas-extra, o representante da empresa não sabia o que dizer e a tal senhora tentava mediar a situação.

Acabaram se levantando, a moça e o rapaz. Passaram por ela e saíram rapidamente. Chegou então a sua vez e ela, acompanhada de uma representante da sua quase ex-empresa, sentou-se em frente a tal senhora que não levantou os olhos para cumprimentá-la. Era loira de olhos azuis. Blusa turquesa. Um jeitão meio bruto e despachado. Começou a pedir os documentos sem levantar os olhos conferindo as informações e os valores. Tinha uma calculadora cujas teclas apertava com força e rapidamente. As mãos eram bastante mal tratadas.

Até que olhou para ela e perguntou:

- Qual é a profissão da "dotôra"?
- Advogada, ela respondeu e pensou, mas afinal, essa senhora não está lendo os documentos?
- A senhora é casada?
- Sim.
- Tem filhos?
- Sim.
- Nooosssaaa. Que coisa. E o que é que a senhora vai fazer agora?
- Ainda não sei.
- Vai para a Europa! Torra tudo!
Ela sorriu, sem graça, sem saber o que responder.
A tal senhora não se deu por vencida.
- Então abre uma petshop! Dá um dinheiro danado!

Fade out.

terça-feira, 12 de abril de 2011

Edith & Beth

A fotocópia do conto da Edith Wharton chegou ao meu escritório, dentro de um envelope pardo, com o seguinte texto escrito à caneta vermelha na capa:


"Clarisse - It was terrific to meet you over lunch last week. I tried to deliver this to your hotel, but you had already left. It would have been perfect plane reading. I hope it is not too late. Please send me news of a happy ending! All the best, Beth."

O conto em questão chama-se "The Long Run" e ao que tudo indica foi publicado nos Estados Unidos em 1912. Edith Wharton viveu de 1862 a 1937. Eu nasci em 1972. Não fosse isso e eu teria a certeza de que, com pequenas nuances, ela reproduz uma situação vivida por mim anos atrás.

A capacidade de retratar com perfeição situações na verdade universais, que muitos de nós vivemos e com as quais, portanto, nos identificamos, é, até onde eu posso perceber, uma das principais características dos grandes escritores. É, em outras palavras, a empatia, construída pelo autor, dos leitores com os personagens e as passagens narradas.

Por isso, não há nada de extraordinário em constatar a consagrada genialidade de Edith Wharton ao ler seu conto e de alguma forma me ver na sua personagem feminina.

Eu havia almoçado com três advogadas em Chicago quando estive lá a trabalho em 2002. Fui visitar o escritório onde elas trabalhavam e elas me levaram para almoçar. Sabe como é, quatro mulheres juntas. O papo rapidamente migrou do trabalho para a vida pessoal de cada uma. Acabei comentando que tinha reencontrado um grande amor depois de anos, contando toda a saga para elas. As três, um pouco mais velhas que eu, ficaram excitadíssimas, animadas mesmo com a história ou pelo menos com o meu relato, com a minha visão dela.

Beth tentou fazer com que o tal conto chegasse às minhas mãos antes da minha partida mas só fui recebê-lo algum tempo depois da minha volta ao Rio. Uma pena. Talvez eu pudesse ter sido persuadida a enxergar as coisas como elas de fato se apresentavam.

Quando finalmente comecei a ler já era tarde demais. Inicialmente fiquei meio sem entender o motivo pelo qual ela havia se empenhado tanto em fazer com que o conto chegasse às minhas mãos mas a medida em que fui avançando no texto fui tomada por um sentimento que era um misto de medo, nervosismo e emoção. Ao adivinhar o que viria a seguir, pois naquela altura eu já sabia o que ia acontecer, eu temia cada palavra com o coração disparado, como se o conto fosse a prova cabal do desfecho da minha história e confirmasse sua condenação ao fracasso.

Lembro que escrevi para a Beth agradecendo muito pelo texto antes mesmo de lê-lo mas tenho a impressão de que nunca escrevi para ela depois, contando o que tinha acontecido. Assim como na história de Halston Merrick e Paulina Trant o Happy Ending desejado pela Beth não aconteceu.

Arrumando algumas gavetas recentemente esbarrei com a cópia do conto e com o bilhete escrito em vermelho na sua capa. Lembrei desse episódio e mais uma vez me impressionei com a sensibilidade que fez com que a Beth, sem conhecer a mim ou ao personagem masculino da minha história, e em apenas algumas horas, fosse capaz de perceber meandros até então insuspeitos e relacioná-los com o conto de Edith Wharton.

Talvez eu devesse escrever para ela contando que houve um Happy Ending na minha vida. Logo depois desse episódio encontrei meu marido no meio de uma pista de dança e fui feliz para sempre.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Descalabro

Na última quarta-feira estive na emergência da pediatria do Copa D'Or com a minha filha.
Me deparei com um cenário lamentável mas o que mais me deixou indignada não foi ter que submetê-la a essa burocracia kafkiana odiosa que parece infestar a nossa cultura mas saber, pelo meu pediatra, que no Rio de Janeiro não há outra alternativa.
O show de horrores começa na chegada ao Hospital. Não há estacionamento, informa um segurança. A senhora deixa o carro e ele é levado para "um lugar" que fica a quinze minutos daqui.
Em plena Figueiredo de Magalhães, com sorte imbica-se o carro no acostamento e, depois de tirar seu filho doente da cadeirinha e colocá-lo no colo, você é obrigado a andar até um guichê para, então, informar a placa do seu carro e receber um tíquete. Na volta, espera-se pelo carro na calçada.
Entra-se no Hospital. Pega-se uma senha. Sim, uma senha. Vem cá, isso é um hospital ou um banco? "Um hospital senhora, a senha serve 'apenas' para a triagem." Senha, triagem, será que estamos mesmo no lugar certo?
Entrega-se a senha às duas figuras uniformizadas atrás de um balcão. Tailleur azul-marinho impecável, coque, maquiagem. As duas começam a "preencher uma ficha" no computador com as informações constantes no meu documento de identidade e na carteirinha do plano de saúde da minha filha. Uma dita para a outra o que ela tem que fazer. "Aperta aqui, não, dá enter agora, isso, não, agora coloca o nome dos pais." Eu desisto de esperar em pé com a minha filha desmaiada de febre no colo e resolvo me sentar. Vinte minutos depois elas concluem a missão. Me devolvem meus documentos e me dão as costas. Estou apta a passar pela triagem. Já se desincumbiram de mim.
Ficamos ali largadas numa sala de espera com uma televisão ligada num desenho animado sem que ninguém, até aquele momento, meia-hora depois da nossa chegada, tivesse nos perguntado o que tinha a minha filha, o porquê de estarmos ali.
Mais de quarenta minutos depois uma enfermeira chama pelo nome da minha filha. Somos levadas a uma sala contígua onde damos de cara com os vestígios do atendimento anterior. Papéis amassados no chão, a cama de exame coberta por um papel toalha revirado. Sentamos. A enfermeira faz algumas perguntas. Faz anotações num papel. Coloca o termômetro e me informa que a minha filha não tem febre quando sinto que ela está quente e calculo que ela esteja com pelo menos 38.
Voltamos para a mesma sala de espera. E lá passamos mais algum tempo. A minha filha chora, resmunga, não encontra posição, está nitidamente mal, precisando de cuidados, a moça ao lado se comove mas continuamos ali, assistindo Peixonauta.
Somos então chamados por uma médica para uma outra sala. Sentamos. A médica me faz exatamente as mesmas perguntas feitas pela enfermeira só que de modo mais articulado. Pede que eu deite a minha filha na cama de exame e tire a roupinha dela. Faz um exame equivalente ao que um pediatra faria numa consulta e resolve colocar novamente o termômetro. Verifica que a minha filha está com 38,5 de febre. Me informa então que ela tomará um antitérmico, fará um hemograma, um raio x do tórax, que será examinada por um otorrino e que esse périplo levará cerca de uma hora e meia a partir daquele momento.
Seguimos para uma  mini-enfermaria. Começaremos pelo antitérmico. Aviso que a minha filha cospe  esse tipo de remédio. Chegam duas enfermeiras. Pedem que eu recline a minha filha. Colocam o remédio na sua boca com uma seringa. Noventa por cento é cuspido por ela. Pedem que eu arraste o remédio com a chupeta para dentro da boca e se dão por satisfeitas. Viram as costas e vão tratar da vida.
Retiramos o sangue ali mesmo. E vou pular essa parte para não reviver o sofrimento que é ter que imobilizar uma bebezinha de um ano, amararrar seu bracinho com uma faixa de borracha e enfiar uma agulha para tirar sangue. Isso para que os médicos possam fazer um diagnóstico que, em sua maioria, não são capazes de fazer com um simples exame clínico.
Uma enfermeira nos leva para outra sala de espera onde devemos aguardar que nos chamem pelo nome para o raio x. Mais meia-hora. Conversamos com os vizinhos de espera, descobrimos conhecidos, trocamos telefones. Fazemos o exame. Voltamos à tal sala de espera. Mais algum tempo. Aparece a médica que nos diz que devemos ir com ela à enfermaria.
Somos informadas de que os exames foram todos normais e que então, após falar com o meu pediatra, ela vai receitar um antibiótico. Aguardamos a receita. Esperamos pelo carro e seguimos para casa aliviadas. Aliviadas por ela não ter nada. Aliviadas por estar saindo dali.
A sensação que se tem, ao passar por essa, digamos, experiência, é a de que o que se pratica ali é, na verdade, um tratamento de choque para hipocondríacos. Como se nos dissessem: vamos ver se a sua filha está mesmo doente ou se isso não passa de coisa da sua cabeça, sua histérica. E para isso fazem tudo o que está ao alcance deles para que você desista de ser atendido e volte para casa.

Hospital é sempre uma coisa horrorosa. Pelo menos para mim. Tenho aversão. Fui maltratada nas duas vezes em que tive que me internar para ter meus filhos e contava os minutos para sair dali.
Será que só nos seriados americanos hospitais são lugares onde encontramos profissionais comprometidos com aquilo que fazem e, mais importante, lugares onde os pacientes são vistos como pessoas, seres-humanos que, basicamente, precisam de assistência?
Para não morrermos à míngua num hospital público somos obrigados a pagar uma fortuna por um bom plano de saúde e o que temos de volta é um escárnio. A saúde parece ser um negócio como qualquer outro e o que interessa é fazer dinheiro com ela, ou melhor, às custas dela. Não há nenhuma humanidade no tratamento recebido nesses locais. Somos mais um paciente a importunar os hospitais e seus funcionários.

A minha filhota não tinha nada grave e isso é o mais importante. Mas é difícil assimilar que em São Paulo o cenário é tão distante daquele que encontramos aqui. Quando questionado por mim a esse respeito o meu pediatra me disse o seguinte: "pois é, eu quero o Einstein com a praia." A praia não tem como chegar à capital paulista mas por que não temos um Einstein ou hospital do seu gabarito no Rio de Janeiro? Me deu ainda outro dado importante, o Copa D'Or não foi concebido e construído para ser um hospital mas o que houve foi uma adaptação do prédio que ali já existia. Pois é.

O Rio de Janeiro é a segunda maior cidade brasileira e possui apenas uma emergência pediátrica em hospital particular. E aí?

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Do I look like Casper?

Rita Khoury é uma dessas pessoas que passam pela nossa vida e ficam gravadas na memória. Nos conhecemos há alguns anos atrás em Boston quando eu e seu marido, meu amigo Gaby Khoury, participávamos de uma conferência.

Rita nasceu em Bagdá e emigrou para Detroit, nos Estados Unidos, ainda criança com os pais e a irmã. Gaby nasceu no Líbano e deixou seu país durante a Guerra do Líbano em 1982, já adolecente, emigrando para Otawa, no Canadá.

Eles se encontraram em Chicago, no fim de Setembro de 2002. Gaby participava de outra conferência junto comigo. Rita passeava com umas amigas.

Depois do jantar de gala que encerrava a conferência fomos com um grupo a um bar animadíssimo chamado Jilly's. Os homens de smoking e as mulheres de longo chamavam a atenção num ambiente super descontraído. Corredores intransitáveis, repletos, impossível circular ou manter uma conversa. Pedidos ao barman só por mímica.  Eu saí mais cedo do que a maioria. Peguei um táxi e me bati para o hotel com minha saia preta de veludo até o pé. Depois vim a saber que o romance começou naquela noite.

Gaby é engenheiro eletrônico e Rita trabalhava no estande da Channel de uma loja de departamentos em Detroit.

Rita e eu nos demos bem desde o momento em que fomos apresentadas pelo Gaby. Uma dessas amizades súbitas e esporádicas mas genuínas. Sempre morri de rir com ela. Autêntica, espontânea e bem humorada, ela me conquistou de cara.

Três passagens são suficientes para falarmos de Rita.

Estávamos eu, Rita e Gaby numa recepção em Boston quando uma moça mega produzida vem andando na nossa direção e praticamente se joga nos braços do Gaby: "Hello stranger! How are you?  I miss you!!" e continua andando com uma amiga sem se dirigir a mim ou à Rita que, naquele momento, éramos as duas únicas pessoas ao lado do Gaby. Ela permaneceu impassível por alguns segundos passados os quais virou-se para mim, sem mudar a expressão do seu rosto um milímetro sequer, e indagou: "Do I look like Casper?"

Eu devo ter levado alguns minutos até processar a piada. Cansaço, vinho, outro idioma.  Quando então morri de rir ao compreender que ela me perguntava se se parecia com o fantasminha Gasparzinho já que a moça atirada não tinha, aparentemente, nos enxergado.

No ano seguinte nos reencontramos em Phoenix. Eu e Gaby participando da conferência, ela acompanhando o marido. Numa noite, achando tudo muito chato a nossa volta, começamos a conversar sobre maquiagem. Ela então muito séria e profissional me pergunta quais eram as marcas de cosméticos que eu gostava. Ao me ouvir dizer que eu gostava de Clinique ela vira-se para mim quase com pena, me aconselhando como faria uma avó ou uma tia: "this is too basic for you" vaticinou e me recomendou um rímel Yves Saint Laurent no qual me viciei desde então pois, como me disse, ele realmente muda a vida de uma mulher.

Numa das nossas muitas conversas falamos das nossas famílias, das nossas cidades, dos nossos países, dos hábitos e costumes de cada uma. Em determinado momento eu perguntei com a maior naturalidade se ela tinha família em Bagdá e se os visitava de vez em quando. Nunca me esqueci da sua resposta: "no, it is a war zone" me disse ela muito tranquila.

Isso foi em 2005 e essa frase permance comigo. Fiquei pensando naquele casal, ambos fugidos de guerra, imigrantes no Estados Unidos, construíndo uma vida juntos. Ela impossibilitada de voltar ao seu país.

Nos vimos pela última vez em 2008, novamente em Chicago numa recepção dentro do Museu de Ciência. Gaby e Rita já tinham Nadine que naquela altura devia ter quase dois anos. Eu estava com o Lucas que pôde então conhecê-los. Lembro que a Nadine dormia num carrinho toda arrumadinha e que usava uma meia-calça lilás de algodão combinando com o vestido.

Hoje eles moram em Seattle e tem duas filhas: Nadine e Clarisse.

É bom saber que a gente também passa pela vida das pessoas e, de alguma forma, fica na memória.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Crush

Tive um amigo músico que dizia não entender - na verdade ele achava graça de mim, quase caçoava, fazia pouco - por que é que eu prestava tanta atenção em letra de música. Por que motivo elas eram tão importantes para mim. Como se isso fosse algo menor, menos sofisticado, menos "cool" mesmo, do que a abstração superior da música em si.

E aqui nesse ponto faço uma pequena digressão.

Muito comum essa necessidade dos homens de diminuir intelectualmente as mulheres que estão ao seu lado. Acho que fica mais fácil para eles. Se colar, colou e os galos ficam cantando sozinhos. Há mulheres também, claro, que têm essa necessidade em relação a outras mulheres. Eu conheço uma que é a personificação disso mas não me serve de exemplo para essa história.

Meu marido, que é uma pessoa adorável, com quem, não por acaso, eu escolhi dividir a vida e ter filhos, volta e meia tem uns lapsos análogos ao do meu amigo. Conversa assuntos com seu pai que não conversa comigo. Inadagado sobre isso uma vez me deu a seguinte resposta: você não lê The Economist.

Meu pai constitui como poucos outra excelente analogia. Frequentemente conto para ele que cometi o crime hediondo de assistir determinado filme não pertencente à esfera cult-sofisticada-cabeça-alternativa frequentada por ele. Quando como resposta não recebo apenas silêncio, ouço algo como: "eu não sei que filme é esse" ou "ah, fizeram um filme sobre isso?", "minha filha você precisa apurar seu gosto". No caso dele, especificamente, eu não deveria me espantar pois foi ele quem me levou, aos oito anos de idade, para assistir, no Ricamar, num domigo chuvoso, "Ivan o Terrível" e surpreendeu-se quando eu me escondi atrás da poltrona da frente e disse que queria ir embora.

Coitadinha de mim se eu fosse acreditar nesses rapazes. Digressão concluída, volto ao meu tema.

O amigo músico só conseguia prestar atenção na música, na melodia, na harmonia, no ritmo e, para ele, a letra não tinha a menor importância. Eu me lembrava de letras inteiras, comentava, cantarolava, me emocionava, fazia referências, dedicatórias, usava aquilo no meu dia a dia e ele achava isso muito engraçado, quase um fenômeno, uma bobagem juvenil.

Não me espanta que a nossa história não tenha evoluído. Ok, poderia se achar que nossas visões se complementavam, letra & música, oh, em harmonia, mas eu realmente não consigo entender como alguém pode ouvir uma canção e não perceber a letra.

Ele se traiu um dia quando, voltando da praia juntos, ouviámos no carro aquele cd Duets, do Frank Sinatra. De repente entra a Barbra Streisand: I've got a crush on you...sweetie pie... Ele vira-se para mim: essa é a nossa música, é isso o que a gente tem. Ahã.

domingo, 3 de abril de 2011

Tendência

Ela acordava bem cedo para pegar o frescão das oito. Se arrumava com prazer. Gostava de se aprontar para ir trabalhar.  Saía sem tomar café, economizando o tempo que ganharia ao comprar alguma coisa para viagem numa das lanchonetes perto do escritório.

Numa dessas manhãs, quando tudo em sua vida ainda estava por acontecer, passou por uma daquelas lanchonetes para pegar um café da manhã para viagem que comeria em sua sala, em cima da mesa, já com o computador ligado, organizando as tarefas daquele dia, apesar da proibição, de acordo com uma das inúmeras regras da empresa, de se comer dentro das salas, mais especificamente em cima das mesas de trabalho, "para não sujar as pastas."

Pediu  o de sempre, um pão na chapa e um café. E estava ela ali, em plena Visconde de Inhaúma, antes das nove da manhã, bem vestida, perfumada, arrumada, enfim, a contemplar aquele cenário não muito convidativo daquela lanchonete na beira da avenida, com gente gritando atrás do balcão, alguns clientes sonados ao seu lado, um cheiro não muito bom que vinha não se sabe se da rua ou de dentro da lanchonete.

Como de hábito começou a observar as pessoas a sua volta e a gerente da lanchonete chamou a sua atenção. Sulamita. Loira platinum pintada, cabelos longos maltratados, unhas enormes - daquelas que se curvam no final - pintadas de esmalte escuro, muitas, mas muitas, bijuterias penduradas, blusa de lycra turquesa, peitos maiores que o sutiã, olhos muito pintados e uma voz de soprano desvirtuada difícil de esquecer. Comandava os rapazes atrás do balcão com gritos torcidos ao final: ô Aíltoooon, cadê o cheessalada?! Sai pão na chapa e acerola com laranjaaaaa!! Eu pedi um eggburger com maracujá, cadê Marcelinhoooo?!

Ela esperava um pouco retraída, meio sem querer encostar em nada, com medo de que alguém encostasse nela. E tinha a sensação de que as pessoas em volta se perguntavam o que ela estava fazendo ali. Ela também não sabia.  Já cansada de esperar, preocupada em chegar cedo, ela resolve abordar a Sulamita. Meio com medo da reação, pergunta polidamente: por favor, eu pedi um pão na chapa e um expresso. A senhora poderia verificar se já está saindo? Ô Aíltooon, cadê o lanche da moça aqui no balcão?

A resposta do Aílton foi sufocada pelo barulho do liquidificador batendo alguma coisa. Só Sulamita escutou. Ele deve ter feito alguma gracinha ao que ela respondeu, indignada: Aíltooon, toma tendência! Toma tendência, repetiu.