terça-feira, 30 de agosto de 2011

Escrever é preciso: Rinha

Escrever é preciso: Rinha: Andei meio impressionada nos últimos dias com algumas manifestações sobre o "evento" UFC ocorrido aqui no Rio no fim de semana. Amigos v...

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Rinha



Andei meio impressionada nos últimos dias com algumas manifestações sobre o "evento" UFC ocorrido aqui no Rio no fim de semana. 
Amigos vibrando com a luta final me deixaram realmente incomodada e me pus a refletir sobre esse incômodo.
Gosto não se discute, se lamenta, eu poderia dizer e isso seria uma saída fácil para a questão. Não acho porém que seja, apenas, uma questão de gosto. De apreciar ou não determinada coisa.
Talvez seja um sinal dos tempos, do tempo violento e desprovido de humanidade em que vivemos.
Nunca fui uma esportista ou propriamente uma fã de esportes em geral. Ao contrário. Sempre fui completamente desajeitada para todo e qualquer esporte. A ponto de meus pais ficarem preocupados com a minha destreza quando comecei a aprender a dirigir - preocupação essa, diga-se, desnecessária, pois me tornei uma exímia motorista apesar de fugir da bola como de um meteoro caíndo do céu. 
Sempre gostei de alguns esportes mas nunca de forma apaixonada a menos que a experiência envolvesse a seleção brasileira e a palavra "final". É isso. Gosto de futebol na Copa do Mundo, Vôlei porque o Brasil arrebenta no masculino e no feminino e tenho uma prima campeã, basquete da NBA porque não há como não gostar daqueles caras. Fora isso, de quatro em quatro anos, Olimpíadas, é claro, e só. Ah, sempre gostei de cavalos, do animal e de andar neles mas nunca vi  nisso uma prática esportiva.
No início da adolecência achei alguma graça nos filmes Rocky, o lutador. Muito por causa de "Eye of the tiger" e, confesso, do Silvester Stallone. Ninguém é perfeito. Mas dentro do meu total e assumido desconhecimento esportivo consigo ver, ainda que com algumas ressalvas, graça no box.
Me choca, e o termo é esse mesmo, que uma luta como "vale-tudo" mova e comova pessoas e, pior, que as pessoas se refiram a essa prática como esporte. Como já disse não sou nenhuma expert no assunto mas me permito dizer que não dá para chamar isso de esporte. Uma luta aonde "vale tudo" e o legal é a "porrada" é, para mim, a antítese do esporte e do espírito que esse celebra.
Me lembra, sinceramente, de briga de galo, que é uma coisa horrorosa, da definição à prática. Colocar dois animais para se escalpelar até a morte. O vale tudo é muito diferente disso?
Basta ir até a wikipedia: 
O termo Rinha se refere ao ato de se confrontar diversos animais que são postos a brigar numa área delimitada, tais como as rinhas de galo e as rinhas de cães.

domingo, 21 de agosto de 2011

A Bá

Ela não chegou propriamente lá em casa. Foi levada pela minha mãe depois de uma árdua perseguição. Minha mãe, acho eu que num momento de iluminação, sacou que aquela moça que trabalhava para a vizinha da tia seria uma aliada fiel para toda a vida. Sem nenhum pudor iniciou um assédio que acabou por ser bem sucedido.

Depois disso a Bá ficou com a gente por 38 anos e, junto com meus pais, criou a mim e à minha irmã. Quando eu cheguei ela já estava lá me esperando. Gripada, não pôde chegar perto de mim logo de cara. Contrariada, esperou a gripe ir embora para me pegar no colo seguindo a determinação da minha mãe. Ali começava uma das relações mais fortes da minha vida.

A Bá vem me visitar de vez em quando. Fica feliz como uma avó em ver os meus filhos crescendo. Me faz recomendações sobre como lidar com eles. Já bem velhinha chega na minha casa e senta numa cadeira da sala com uma xícara de café. Às vezes aceita um pedaço de bolo. Conta sempre as mesmas histórias que adoramos ouvir. Nos lembra da nossa infância e da sua presença nela.

Ela cuidava de nós duas e da casa e tirava tudo de letra. A comida irreparável. O feijão regado a louro, as batatas fritas, que eram cozidas antes, tinham o formato perfeito de uma lua minguante e desmanchavam na boca. O frango assado com farofa, sempre às quartas-feiras no jantar, eu posso ver na minha frente. Vinha normalmente acompanhado de um molho especial do próprio frango, arroz branco soltinho e vagem francesa. A ambrosia faz parte das minhas muitas lembranças dela. Era servida num pote de cerâmica cujo interior era também amarelo e tinha uma aguinha doce no fundo.

A roupa era passada de modo impecável. As manchas todas removidas com facilidade. A casa sempre perfumada e limpa.

Mas acima de tudo isso o amor dedicado a mim e à minha irmã era algo tocante.

Não me lembro de ver ela brava com a gente. Muitas vezes ficava nervosa comigo e com a  minha irmã se estapiando pelo apartamento. Uma bateção de portas, perseguição munidas de facas, correria, choradeira. Ela não tinha dúvida. Ligava para a minha mãe e nos denunciava.

Na adolescência tomava satisfação dos namorados. E quando eles aprontavam viravam "pesona non grata" lá em casa.

Ela cresceu numa fazenda perto de Cataguases. Veio para o Rio mocinha para trabalhar na casa de uma senhora rica que a maltratava. Era obrigada a dormir em cima do estrado da cama. Sem direito a colchão.  Um dia, conversando com a minha mãe, disse o seguinte: "do meu pai eu só conheci o chapéu." O pai tinha deixado a mãe e sumido no mundo. Tinha muitos irmãos e irmãs e era muito querida por todos eles. Boa toda vida ajudava a todos com seu modesto salário. Gastava apenas com o cigarro, vício abandonado anos depois. Assim, economizou o suficiente para comprar sua casa onde hoje vive com um gato e uma tartaruga.

Perdeu a mãe, alguns irmãos, o único namorado - que morreu atropelado no aterro - e continuou com a gente, morando na nossa casa, ajudando a todos nós com a sua presença confortante e dedicação. Na nossa casa ela tinha quarto com banheiro reformado, colcha de patchwork cor de rosa e, acima de tudo, afeto e respeito.

Depois que tive os meus filhos e passei a observar esse exército de branco que tomou conta da cidade penso sempre na Bá e em como foi bom crescer num momento onde as babás não se vestiam de branco, eram parte da nossa família e nos davam amor de verdade.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Uma Crônica Portuguesa com certeza

Lembro que em algum momento cheguei a pensar sobre isso. Sobre como eu - que tinha me perdido de madrugada em Haia, levado um fora no inverno de Milão depois de um passeio de lambreta, tido a mala extraviada na África do Sul, chegado a Osaka numa noite chuvosa, desembarcado em Seul numa manhã inóspita de abril, ido a São Petersburgo três dias depois do 11 de setembro - podia não dominar uma simples ida a Portugal com duas crianças pequenas.

Nosso avião pousou em Lisboa às cinco da manhã. Hora local. Para nós eram três da madrugada. Primeira viagem internacional com os dois pequenos.

O mais velho dormia profundamente. A caçula precisava ser trocada, o que foi feito às pressas ainda no avião. Nós dois, zonzos de sono, carregávamos muito mais malas de mão do que efetivamente precisávamos.

Saimos do avião cada um com um filho, os dois cheios de malas, carrinhos e casacos pendurados. Felizes com a chegada e a proximidade dos amigos, caminhamos pelo aeroporto de Lisboa. O filho desmaiado no carrinho, a filha no canguru quietinha. Quase um milagre.

E eis que chegamos à fila da imigração. Olho à minha volta, procuro e não vejo a bolsa preta de couro, comprada para a viagem, onde havia guardado não apenas os quatro passaportes mas também algumas jóias e a metade do nosso dinheiro. Com o coração na boca olho pro meu marido e, gelada, me dou conta de que a bolsa havia ficado no avião.

Em poucos segundos reconstitui mentalmente o que tinha acontecido. Na correria para sair do avião pegamos tudo do nosso compartimento menos a minha bolsa, que não estava lá. Havia sido reacomodada pela aeromoça em outro compartimento minutos antes da aterrissagem.

Nos dirigimos a um balcao da companhia aérea e explicamos o que tinha acontecido. O português que nos atendia reagiu tranquilo nos dizendo com seu lindo sotaque que não havia problema. Deveríamos passar pelo controle de passaporte e, então, nos dirigirmos ao Achados e Perdidos.

Isso não vai ser possível. Os passaportes estão dentro da bolsa. O português nos olhou desorientado. Acionou alguém no rádio pedindo que fosse até o avião para recuperar a bolsa. Nessa altura, como que por encanto, dormiam os dois pequenos. Um no carrinho, outra no canguru.

Nosso amigo querido, que havia acordado de madrugada para nos buscar, devia estar lá fora sem entender por que motivo não aparecíamos. Pois é. O celular também estava na bolsa. Não dava para ligar e explicar a situação.

Enquanto o português se comunicava no rádio convenci meu marido que fizesse o caminho de volta e tentasse entrar no avião. O aeroporto de Lisboa não era grande, achei que valia a pena. E eu fiquei ali, naquele terminal, na manhã do dia 24 de dezembro com um filho dormindo no carrinho, outra no canguru, sem dinheiro, sem passaporte, sem saber o que fazer.

Olhei à minha volta e só então vi que o pequeno terminal estava cheio de pessoas aparentemente acampadas por ali. Os primeiros quinze minutos em que fiquei ali esperando a resposta do português e o resultado da expedição do marido foram suficientes para que eu  entendesse o que acontecia. Eles haviam vindo num vôo e perdido a conexão. Muitos não tinham visto e, por isso, não podiam sair dali para um hotel para esperar o vôo do dia seguinte.

Me dei conta de que caso a minha bolsa não fosse encontrada nós também não poderíamos sair dali e fiquei a imaginar com seria a nossa noite de natal.

O avião estava fechado. Fomos novamente ao balcão para saber como evoluíam as coisas. Muita gente na frente do balcao, brigas entre um grupo de africanos e a policia do aeroporto.

Depois de cerca de duas horas de uma espera torturante, as duas crianças milagrosamente dormindo, avistamos duas pessoas uniformizadas carregando a minha bolsa. Um policial e um funcionário do aeroporto. Nos dirigimos todos para o tal balcão. O policial me entregou a bolsa solenemente e me pediu que verificasse se estava tudo como eu deixei. Abri a bolsa com um certo receio e um pouco contrangida. Para minha surpresa estava tudo absolutamente intocado. Os quatro passaportes no compartimento lateral com zíper, todo o nosso dinheiro, minha modestas mas queridas jóias. Me pediram que eu assinasse um papel. Agradecemos muito e seguimos então para o controle de passaporte. Pegamos as malas já estacionadas ao lado da esteira e, finalmente, saímos ao encontro do nosso amigo que, mesmo depois de duas horas de espera, sorriu feliz ao nos avistar cruzando a porta automática.

As criancas acordaram logo depois. Seguimos de carro para Cascais. E ao avistar Lisboa surgindo no horizonte respirei aliviada, uma mão pousada em cada filho, me reassegurando de que estava tudo bem e de que a viagem seguiria em paz.

domingo, 7 de agosto de 2011

Gatos pardos

Gosto da casa à noite. Depois que as crianças dormem. Quando nada me alcança. Quando há um silêncio tranquilo que observo à meia-luz e vislumbro a cidade lá longe como que pintada na minha janela.  Há um certo aconchego que invade a casa. Tarde da noite. As crianças na cama, aquela entrega infantil ao sono que me comove todas as noites quando entro nos seus quartos. Há sempre uns grilos cantando na mata ao lado, um cachorro que late na casa da frente e outro que responde mais adiante. Às vezes, há gatas no cio.
Sigo um certo ritual depois que os dois adormecem. Cada um no seu quarto, as portas fechadas, a babá eletrônica ligada. Depois do banho quente esquento meu jantar, tomo um copo de vinho.
Vago pela casa observando seus recantos, aquele silêncio sagrado que me acompanha. Quase sempre adio a ida pra cama encontrando coisas para fazer que me impedem de chegar a ela. Não que eu não a deseje mas há sempre algo por fazer. Finalmente chego ao meu quarto. Depois de olhar as crianças mais uma vez pego um copo d'água filtrada. Deixo uma pequena luz acesa no corredor para servir de guia caso o mais velho acorde e venha até o meu quarto. Entro na minha cama pelo lado esquerdo. Começo a noite com dois travesseiros, o pescoço mais alto, de barriga para cima.  Leio um pouco. Menos do que gostaria. Apago o abajour e logo em seguida viro para o lado. O braço direito por baixo do travesseiro, as pernas dobradas, semi-encolhidas. Caio num sono profundo, de poucos sonhos, até que um dos dois me desperte ou que a luz vinda de trás do black-out me faça abrir os olhos.

sábado, 16 de abril de 2011

Petshop

Foi mais ou menos assim. Numa rua do Centro do Rio, no sede do sindicato. Era uma tarde de verão daquelas nubladas. O céu pesado. Ela foi assinar a rescisão do seu contrato de trabalho. Tinha sido desligada. Da parte dela um misto de alívio e desconforto.

Marcaram às duas da tarde. E lá estava ela com os documentos embaixo do braço aguardando a sua vez. Um prédio qualquer, uma sala mal ajambrada na sobreloja. Um balcão dividindo o espaço. Tudo à sua volta era marrom.

Do outro lado do balcão uma moça, um rapaz e a tal senhora.  Pelo que ela pôde perceber a moça estava questionando horas-extra, o representante da empresa não sabia o que dizer e a tal senhora tentava mediar a situação.

Acabaram se levantando, a moça e o rapaz. Passaram por ela e saíram rapidamente. Chegou então a sua vez e ela, acompanhada de uma representante da sua quase ex-empresa, sentou-se em frente a tal senhora que não levantou os olhos para cumprimentá-la. Era loira de olhos azuis. Blusa turquesa. Um jeitão meio bruto e despachado. Começou a pedir os documentos sem levantar os olhos conferindo as informações e os valores. Tinha uma calculadora cujas teclas apertava com força e rapidamente. As mãos eram bastante mal tratadas.

Até que olhou para ela e perguntou:

- Qual é a profissão da "dotôra"?
- Advogada, ela respondeu e pensou, mas afinal, essa senhora não está lendo os documentos?
- A senhora é casada?
- Sim.
- Tem filhos?
- Sim.
- Nooosssaaa. Que coisa. E o que é que a senhora vai fazer agora?
- Ainda não sei.
- Vai para a Europa! Torra tudo!
Ela sorriu, sem graça, sem saber o que responder.
A tal senhora não se deu por vencida.
- Então abre uma petshop! Dá um dinheiro danado!

Fade out.

terça-feira, 12 de abril de 2011

Edith & Beth

A fotocópia do conto da Edith Wharton chegou ao meu escritório, dentro de um envelope pardo, com o seguinte texto escrito à caneta vermelha na capa:


"Clarisse - It was terrific to meet you over lunch last week. I tried to deliver this to your hotel, but you had already left. It would have been perfect plane reading. I hope it is not too late. Please send me news of a happy ending! All the best, Beth."

O conto em questão chama-se "The Long Run" e ao que tudo indica foi publicado nos Estados Unidos em 1912. Edith Wharton viveu de 1862 a 1937. Eu nasci em 1972. Não fosse isso e eu teria a certeza de que, com pequenas nuances, ela reproduz uma situação vivida por mim anos atrás.

A capacidade de retratar com perfeição situações na verdade universais, que muitos de nós vivemos e com as quais, portanto, nos identificamos, é, até onde eu posso perceber, uma das principais características dos grandes escritores. É, em outras palavras, a empatia, construída pelo autor, dos leitores com os personagens e as passagens narradas.

Por isso, não há nada de extraordinário em constatar a consagrada genialidade de Edith Wharton ao ler seu conto e de alguma forma me ver na sua personagem feminina.

Eu havia almoçado com três advogadas em Chicago quando estive lá a trabalho em 2002. Fui visitar o escritório onde elas trabalhavam e elas me levaram para almoçar. Sabe como é, quatro mulheres juntas. O papo rapidamente migrou do trabalho para a vida pessoal de cada uma. Acabei comentando que tinha reencontrado um grande amor depois de anos, contando toda a saga para elas. As três, um pouco mais velhas que eu, ficaram excitadíssimas, animadas mesmo com a história ou pelo menos com o meu relato, com a minha visão dela.

Beth tentou fazer com que o tal conto chegasse às minhas mãos antes da minha partida mas só fui recebê-lo algum tempo depois da minha volta ao Rio. Uma pena. Talvez eu pudesse ter sido persuadida a enxergar as coisas como elas de fato se apresentavam.

Quando finalmente comecei a ler já era tarde demais. Inicialmente fiquei meio sem entender o motivo pelo qual ela havia se empenhado tanto em fazer com que o conto chegasse às minhas mãos mas a medida em que fui avançando no texto fui tomada por um sentimento que era um misto de medo, nervosismo e emoção. Ao adivinhar o que viria a seguir, pois naquela altura eu já sabia o que ia acontecer, eu temia cada palavra com o coração disparado, como se o conto fosse a prova cabal do desfecho da minha história e confirmasse sua condenação ao fracasso.

Lembro que escrevi para a Beth agradecendo muito pelo texto antes mesmo de lê-lo mas tenho a impressão de que nunca escrevi para ela depois, contando o que tinha acontecido. Assim como na história de Halston Merrick e Paulina Trant o Happy Ending desejado pela Beth não aconteceu.

Arrumando algumas gavetas recentemente esbarrei com a cópia do conto e com o bilhete escrito em vermelho na sua capa. Lembrei desse episódio e mais uma vez me impressionei com a sensibilidade que fez com que a Beth, sem conhecer a mim ou ao personagem masculino da minha história, e em apenas algumas horas, fosse capaz de perceber meandros até então insuspeitos e relacioná-los com o conto de Edith Wharton.

Talvez eu devesse escrever para ela contando que houve um Happy Ending na minha vida. Logo depois desse episódio encontrei meu marido no meio de uma pista de dança e fui feliz para sempre.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Descalabro

Na última quarta-feira estive na emergência da pediatria do Copa D'Or com a minha filha.
Me deparei com um cenário lamentável mas o que mais me deixou indignada não foi ter que submetê-la a essa burocracia kafkiana odiosa que parece infestar a nossa cultura mas saber, pelo meu pediatra, que no Rio de Janeiro não há outra alternativa.
O show de horrores começa na chegada ao Hospital. Não há estacionamento, informa um segurança. A senhora deixa o carro e ele é levado para "um lugar" que fica a quinze minutos daqui.
Em plena Figueiredo de Magalhães, com sorte imbica-se o carro no acostamento e, depois de tirar seu filho doente da cadeirinha e colocá-lo no colo, você é obrigado a andar até um guichê para, então, informar a placa do seu carro e receber um tíquete. Na volta, espera-se pelo carro na calçada.
Entra-se no Hospital. Pega-se uma senha. Sim, uma senha. Vem cá, isso é um hospital ou um banco? "Um hospital senhora, a senha serve 'apenas' para a triagem." Senha, triagem, será que estamos mesmo no lugar certo?
Entrega-se a senha às duas figuras uniformizadas atrás de um balcão. Tailleur azul-marinho impecável, coque, maquiagem. As duas começam a "preencher uma ficha" no computador com as informações constantes no meu documento de identidade e na carteirinha do plano de saúde da minha filha. Uma dita para a outra o que ela tem que fazer. "Aperta aqui, não, dá enter agora, isso, não, agora coloca o nome dos pais." Eu desisto de esperar em pé com a minha filha desmaiada de febre no colo e resolvo me sentar. Vinte minutos depois elas concluem a missão. Me devolvem meus documentos e me dão as costas. Estou apta a passar pela triagem. Já se desincumbiram de mim.
Ficamos ali largadas numa sala de espera com uma televisão ligada num desenho animado sem que ninguém, até aquele momento, meia-hora depois da nossa chegada, tivesse nos perguntado o que tinha a minha filha, o porquê de estarmos ali.
Mais de quarenta minutos depois uma enfermeira chama pelo nome da minha filha. Somos levadas a uma sala contígua onde damos de cara com os vestígios do atendimento anterior. Papéis amassados no chão, a cama de exame coberta por um papel toalha revirado. Sentamos. A enfermeira faz algumas perguntas. Faz anotações num papel. Coloca o termômetro e me informa que a minha filha não tem febre quando sinto que ela está quente e calculo que ela esteja com pelo menos 38.
Voltamos para a mesma sala de espera. E lá passamos mais algum tempo. A minha filha chora, resmunga, não encontra posição, está nitidamente mal, precisando de cuidados, a moça ao lado se comove mas continuamos ali, assistindo Peixonauta.
Somos então chamados por uma médica para uma outra sala. Sentamos. A médica me faz exatamente as mesmas perguntas feitas pela enfermeira só que de modo mais articulado. Pede que eu deite a minha filha na cama de exame e tire a roupinha dela. Faz um exame equivalente ao que um pediatra faria numa consulta e resolve colocar novamente o termômetro. Verifica que a minha filha está com 38,5 de febre. Me informa então que ela tomará um antitérmico, fará um hemograma, um raio x do tórax, que será examinada por um otorrino e que esse périplo levará cerca de uma hora e meia a partir daquele momento.
Seguimos para uma  mini-enfermaria. Começaremos pelo antitérmico. Aviso que a minha filha cospe  esse tipo de remédio. Chegam duas enfermeiras. Pedem que eu recline a minha filha. Colocam o remédio na sua boca com uma seringa. Noventa por cento é cuspido por ela. Pedem que eu arraste o remédio com a chupeta para dentro da boca e se dão por satisfeitas. Viram as costas e vão tratar da vida.
Retiramos o sangue ali mesmo. E vou pular essa parte para não reviver o sofrimento que é ter que imobilizar uma bebezinha de um ano, amararrar seu bracinho com uma faixa de borracha e enfiar uma agulha para tirar sangue. Isso para que os médicos possam fazer um diagnóstico que, em sua maioria, não são capazes de fazer com um simples exame clínico.
Uma enfermeira nos leva para outra sala de espera onde devemos aguardar que nos chamem pelo nome para o raio x. Mais meia-hora. Conversamos com os vizinhos de espera, descobrimos conhecidos, trocamos telefones. Fazemos o exame. Voltamos à tal sala de espera. Mais algum tempo. Aparece a médica que nos diz que devemos ir com ela à enfermaria.
Somos informadas de que os exames foram todos normais e que então, após falar com o meu pediatra, ela vai receitar um antibiótico. Aguardamos a receita. Esperamos pelo carro e seguimos para casa aliviadas. Aliviadas por ela não ter nada. Aliviadas por estar saindo dali.
A sensação que se tem, ao passar por essa, digamos, experiência, é a de que o que se pratica ali é, na verdade, um tratamento de choque para hipocondríacos. Como se nos dissessem: vamos ver se a sua filha está mesmo doente ou se isso não passa de coisa da sua cabeça, sua histérica. E para isso fazem tudo o que está ao alcance deles para que você desista de ser atendido e volte para casa.

Hospital é sempre uma coisa horrorosa. Pelo menos para mim. Tenho aversão. Fui maltratada nas duas vezes em que tive que me internar para ter meus filhos e contava os minutos para sair dali.
Será que só nos seriados americanos hospitais são lugares onde encontramos profissionais comprometidos com aquilo que fazem e, mais importante, lugares onde os pacientes são vistos como pessoas, seres-humanos que, basicamente, precisam de assistência?
Para não morrermos à míngua num hospital público somos obrigados a pagar uma fortuna por um bom plano de saúde e o que temos de volta é um escárnio. A saúde parece ser um negócio como qualquer outro e o que interessa é fazer dinheiro com ela, ou melhor, às custas dela. Não há nenhuma humanidade no tratamento recebido nesses locais. Somos mais um paciente a importunar os hospitais e seus funcionários.

A minha filhota não tinha nada grave e isso é o mais importante. Mas é difícil assimilar que em São Paulo o cenário é tão distante daquele que encontramos aqui. Quando questionado por mim a esse respeito o meu pediatra me disse o seguinte: "pois é, eu quero o Einstein com a praia." A praia não tem como chegar à capital paulista mas por que não temos um Einstein ou hospital do seu gabarito no Rio de Janeiro? Me deu ainda outro dado importante, o Copa D'Or não foi concebido e construído para ser um hospital mas o que houve foi uma adaptação do prédio que ali já existia. Pois é.

O Rio de Janeiro é a segunda maior cidade brasileira e possui apenas uma emergência pediátrica em hospital particular. E aí?

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Do I look like Casper?

Rita Khoury é uma dessas pessoas que passam pela nossa vida e ficam gravadas na memória. Nos conhecemos há alguns anos atrás em Boston quando eu e seu marido, meu amigo Gaby Khoury, participávamos de uma conferência.

Rita nasceu em Bagdá e emigrou para Detroit, nos Estados Unidos, ainda criança com os pais e a irmã. Gaby nasceu no Líbano e deixou seu país durante a Guerra do Líbano em 1982, já adolecente, emigrando para Otawa, no Canadá.

Eles se encontraram em Chicago, no fim de Setembro de 2002. Gaby participava de outra conferência junto comigo. Rita passeava com umas amigas.

Depois do jantar de gala que encerrava a conferência fomos com um grupo a um bar animadíssimo chamado Jilly's. Os homens de smoking e as mulheres de longo chamavam a atenção num ambiente super descontraído. Corredores intransitáveis, repletos, impossível circular ou manter uma conversa. Pedidos ao barman só por mímica.  Eu saí mais cedo do que a maioria. Peguei um táxi e me bati para o hotel com minha saia preta de veludo até o pé. Depois vim a saber que o romance começou naquela noite.

Gaby é engenheiro eletrônico e Rita trabalhava no estande da Channel de uma loja de departamentos em Detroit.

Rita e eu nos demos bem desde o momento em que fomos apresentadas pelo Gaby. Uma dessas amizades súbitas e esporádicas mas genuínas. Sempre morri de rir com ela. Autêntica, espontânea e bem humorada, ela me conquistou de cara.

Três passagens são suficientes para falarmos de Rita.

Estávamos eu, Rita e Gaby numa recepção em Boston quando uma moça mega produzida vem andando na nossa direção e praticamente se joga nos braços do Gaby: "Hello stranger! How are you?  I miss you!!" e continua andando com uma amiga sem se dirigir a mim ou à Rita que, naquele momento, éramos as duas únicas pessoas ao lado do Gaby. Ela permaneceu impassível por alguns segundos passados os quais virou-se para mim, sem mudar a expressão do seu rosto um milímetro sequer, e indagou: "Do I look like Casper?"

Eu devo ter levado alguns minutos até processar a piada. Cansaço, vinho, outro idioma.  Quando então morri de rir ao compreender que ela me perguntava se se parecia com o fantasminha Gasparzinho já que a moça atirada não tinha, aparentemente, nos enxergado.

No ano seguinte nos reencontramos em Phoenix. Eu e Gaby participando da conferência, ela acompanhando o marido. Numa noite, achando tudo muito chato a nossa volta, começamos a conversar sobre maquiagem. Ela então muito séria e profissional me pergunta quais eram as marcas de cosméticos que eu gostava. Ao me ouvir dizer que eu gostava de Clinique ela vira-se para mim quase com pena, me aconselhando como faria uma avó ou uma tia: "this is too basic for you" vaticinou e me recomendou um rímel Yves Saint Laurent no qual me viciei desde então pois, como me disse, ele realmente muda a vida de uma mulher.

Numa das nossas muitas conversas falamos das nossas famílias, das nossas cidades, dos nossos países, dos hábitos e costumes de cada uma. Em determinado momento eu perguntei com a maior naturalidade se ela tinha família em Bagdá e se os visitava de vez em quando. Nunca me esqueci da sua resposta: "no, it is a war zone" me disse ela muito tranquila.

Isso foi em 2005 e essa frase permance comigo. Fiquei pensando naquele casal, ambos fugidos de guerra, imigrantes no Estados Unidos, construíndo uma vida juntos. Ela impossibilitada de voltar ao seu país.

Nos vimos pela última vez em 2008, novamente em Chicago numa recepção dentro do Museu de Ciência. Gaby e Rita já tinham Nadine que naquela altura devia ter quase dois anos. Eu estava com o Lucas que pôde então conhecê-los. Lembro que a Nadine dormia num carrinho toda arrumadinha e que usava uma meia-calça lilás de algodão combinando com o vestido.

Hoje eles moram em Seattle e tem duas filhas: Nadine e Clarisse.

É bom saber que a gente também passa pela vida das pessoas e, de alguma forma, fica na memória.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Crush

Tive um amigo músico que dizia não entender - na verdade ele achava graça de mim, quase caçoava, fazia pouco - por que é que eu prestava tanta atenção em letra de música. Por que motivo elas eram tão importantes para mim. Como se isso fosse algo menor, menos sofisticado, menos "cool" mesmo, do que a abstração superior da música em si.

E aqui nesse ponto faço uma pequena digressão.

Muito comum essa necessidade dos homens de diminuir intelectualmente as mulheres que estão ao seu lado. Acho que fica mais fácil para eles. Se colar, colou e os galos ficam cantando sozinhos. Há mulheres também, claro, que têm essa necessidade em relação a outras mulheres. Eu conheço uma que é a personificação disso mas não me serve de exemplo para essa história.

Meu marido, que é uma pessoa adorável, com quem, não por acaso, eu escolhi dividir a vida e ter filhos, volta e meia tem uns lapsos análogos ao do meu amigo. Conversa assuntos com seu pai que não conversa comigo. Inadagado sobre isso uma vez me deu a seguinte resposta: você não lê The Economist.

Meu pai constitui como poucos outra excelente analogia. Frequentemente conto para ele que cometi o crime hediondo de assistir determinado filme não pertencente à esfera cult-sofisticada-cabeça-alternativa frequentada por ele. Quando como resposta não recebo apenas silêncio, ouço algo como: "eu não sei que filme é esse" ou "ah, fizeram um filme sobre isso?", "minha filha você precisa apurar seu gosto". No caso dele, especificamente, eu não deveria me espantar pois foi ele quem me levou, aos oito anos de idade, para assistir, no Ricamar, num domigo chuvoso, "Ivan o Terrível" e surpreendeu-se quando eu me escondi atrás da poltrona da frente e disse que queria ir embora.

Coitadinha de mim se eu fosse acreditar nesses rapazes. Digressão concluída, volto ao meu tema.

O amigo músico só conseguia prestar atenção na música, na melodia, na harmonia, no ritmo e, para ele, a letra não tinha a menor importância. Eu me lembrava de letras inteiras, comentava, cantarolava, me emocionava, fazia referências, dedicatórias, usava aquilo no meu dia a dia e ele achava isso muito engraçado, quase um fenômeno, uma bobagem juvenil.

Não me espanta que a nossa história não tenha evoluído. Ok, poderia se achar que nossas visões se complementavam, letra & música, oh, em harmonia, mas eu realmente não consigo entender como alguém pode ouvir uma canção e não perceber a letra.

Ele se traiu um dia quando, voltando da praia juntos, ouviámos no carro aquele cd Duets, do Frank Sinatra. De repente entra a Barbra Streisand: I've got a crush on you...sweetie pie... Ele vira-se para mim: essa é a nossa música, é isso o que a gente tem. Ahã.

domingo, 3 de abril de 2011

Tendência

Ela acordava bem cedo para pegar o frescão das oito. Se arrumava com prazer. Gostava de se aprontar para ir trabalhar.  Saía sem tomar café, economizando o tempo que ganharia ao comprar alguma coisa para viagem numa das lanchonetes perto do escritório.

Numa dessas manhãs, quando tudo em sua vida ainda estava por acontecer, passou por uma daquelas lanchonetes para pegar um café da manhã para viagem que comeria em sua sala, em cima da mesa, já com o computador ligado, organizando as tarefas daquele dia, apesar da proibição, de acordo com uma das inúmeras regras da empresa, de se comer dentro das salas, mais especificamente em cima das mesas de trabalho, "para não sujar as pastas."

Pediu  o de sempre, um pão na chapa e um café. E estava ela ali, em plena Visconde de Inhaúma, antes das nove da manhã, bem vestida, perfumada, arrumada, enfim, a contemplar aquele cenário não muito convidativo daquela lanchonete na beira da avenida, com gente gritando atrás do balcão, alguns clientes sonados ao seu lado, um cheiro não muito bom que vinha não se sabe se da rua ou de dentro da lanchonete.

Como de hábito começou a observar as pessoas a sua volta e a gerente da lanchonete chamou a sua atenção. Sulamita. Loira platinum pintada, cabelos longos maltratados, unhas enormes - daquelas que se curvam no final - pintadas de esmalte escuro, muitas, mas muitas, bijuterias penduradas, blusa de lycra turquesa, peitos maiores que o sutiã, olhos muito pintados e uma voz de soprano desvirtuada difícil de esquecer. Comandava os rapazes atrás do balcão com gritos torcidos ao final: ô Aíltoooon, cadê o cheessalada?! Sai pão na chapa e acerola com laranjaaaaa!! Eu pedi um eggburger com maracujá, cadê Marcelinhoooo?!

Ela esperava um pouco retraída, meio sem querer encostar em nada, com medo de que alguém encostasse nela. E tinha a sensação de que as pessoas em volta se perguntavam o que ela estava fazendo ali. Ela também não sabia.  Já cansada de esperar, preocupada em chegar cedo, ela resolve abordar a Sulamita. Meio com medo da reação, pergunta polidamente: por favor, eu pedi um pão na chapa e um expresso. A senhora poderia verificar se já está saindo? Ô Aíltooon, cadê o lanche da moça aqui no balcão?

A resposta do Aílton foi sufocada pelo barulho do liquidificador batendo alguma coisa. Só Sulamita escutou. Ele deve ter feito alguma gracinha ao que ela respondeu, indignada: Aíltooon, toma tendência! Toma tendência, repetiu.

quinta-feira, 31 de março de 2011

Deixa a menina sambar em paz

Foi meu amigo Martim quem me contou. Tomamos um café na semana passada. Papo vai, papo vem, ele me conta a tal história. Parece que era uma moça linda, dessas beldades cariocas conhecidas por seus encantos. Cobiçada e, nas palavras do meu amigo, "gostosa". Rio de Janeiro, verão, início dos anos 80. Contou ele, achando muito divertido, que numa noite da sua juventude estava com amigos no Bar Lagoa. Eis que chega a tal moça acompanhada de um conhecido dele, Martim,  e acaba sentando na sua mesa. A noite avança animada e a moça vai embora com o tal conhecido do Martim com quem havia chegado. Passa-se meia hora e a moça volta.  Agora sozinha, senta na mesa sem tecer nenhum comentário e engrena um papo animadíssimo novamente. Hora de ir embora, todos se levantam, e a moça sai acompanhada de um amigo do Martim. No dia seguinte, Martim, que adora uma fofoca, liga para o amigo e ouve um relato entusiasmado da noite passada com a tal menina. Que a moça era incansável, que ele estava exaurido, que isso, que aquilo. Martim delira ao vivenciar, ainda que platonicamente, o encontro do amigo. Tempos depois outro amigo do Martim está numa boate "da moda". Chega a moça. Linda, insinuante e devidamente acompanhada. A noite transcorre como previsto. Todos se divertem, bebem, dançam e começam a ir embora. Como na primeira vez, a menina vai embora acompanhada daquele com que quem havia chegado. Meia-hora depois volta ela sozinha e toda-toda. Se esbalda na pista de dança, no papo, no bar. Sai da boate acompanhada do tal outro amigo do Martim. No dia seguinte... liga o Martim para o amigo e ouve, mesmerizado, os detalhes da noite que o amigo passou com a moça e que o deixaram arriado. Conclui o meu amigo Martim de maneira sarcástica, que a menina "era da pá-virada" e lamenta o fato dela ter vindo a falecer anos depois.
Não ficou claro para mim, e eu resolvi não perguntar, se a tal moça ia para cama com os dois caras ou se saía com um que dispensava, sem maiores avanços, ao avistar uma possibilidade mais interessante com quem resolvia, então, chegar às vias de fato. E o que é que a gente tem a ver com isso?
O que me chamou a atenção não foi propriamente a história em si mas o relato do Martim. A entonação, a malícia, as insinuações nas entrelinhas. Ele não precisou me dizer mas tenho certeza de que a tal moça era, na sua visão, uma "predadora" altamente qualificada, uma perigosa devoradora de homens.
Caminhei para casa pensando que eu jamais ouviria um relato semelhante se o protagonista da história fosse do sexo masculino. Acho que para começar isso nem seria uma história a ser saboreada pelo meu amigo junto com seu capuccino. Algo tão corriqueiro e natural, oras, vamos tratar de assuntos mais importantes.

quarta-feira, 30 de março de 2011

Tive sim

Minha amiga Ju escreveu em seu blog que por duas vezes teve o coração estraçalhado.

Eu tive o coração estraçalhado uma única vez. Já lá se vão muitos e muitos anos mas acho que, graças ao texto da minha amiga, pela primeira vez nomeei corretamente. É isso, tive o coração estraçalhado uma vez, há muitos anos atrás. Depois disso me decepcionei muitas vezes, cai do cavalo tantas outras, levei rasteiras, me frustrei, fiquei devastada pela tristeza,  mas o coração não foi novamente estraçalhado.

Numa das idas e vindas desse namoro,  aquele que estraçalhou meu coração, minha mãe me encontrou no meu quarto de adolecente, encolhida na cama, aos prantos. Ela fez com que eu me sentasse e me pediu o seguinte: minha filha, você vai me prometer uma coisa. Você vai sofrer caminhando na Lagoa, fazendo ginástica, indo ao cinema ou lavando louça mas nunca mais encolhida em cima da sua cama. O sofrimento, digamos, produtivo, recomendado pela minha mãe foi incorporado por mim, uma dessa boas lições que ficam para toda a vida. Segui com o meu coração estraçalhado por aí até o dia em que a dor passou.

Nesse mesmo período, imagino eu que arrasada ao ver a filha sofrer daquele jeito, ela me disse que se sentia responsável pela minha grande espectativa em relação ao amor. Me contou que quando eu nasci ela foi tomada por um amor tão avassalador que nada mais existia para ela. Que não sabia como meu pai tinha aguentado. E que por isso, por ter experimentado, no início da vida, aquele amor incondicional e tão intenso, ela achava que eu esperava ter novamente aquele tipo de amor nas minhas relações amorosas mas que isso nunca ia acontecer. Hoje vejo que ela tinha razão. Essa primeira experiência amorosa do filho com a mãe é única. Somos introduzidos ao afeto através desse contato e me parece que faz sentido que isso de alguma forma nos molde afetivamente.

É. Meu coração foi estraçalhado uma vez. E hoje me sinto bem ao fazer essa constatação. Como que aliviada. Não apenas por ver que fui muito poupada pela vida mas, principalmente, por ter experimentado um sentimento tão intenso por alguém por tanto tempo. Por ter vivido aquilo sem o quê o meu coração não teria sido estraçalhado. Me pergunto às vezes em que medida há uma certa idealização da minha parte. Em que medida há um componente de fantasia na minha percepção desse romance. Será que para ele também foi assim? Incrível, intenso, apaixonado, desesperado, fatal, inesquecível? Será que o coração dele também foi estraçalhado? Diz uma amiga que se eu vivi isso dessa maneira, para ele também foi assim, não tem como ser diferente. Não sei. Mas queria muito saber. Me daria um conforto enorme saber que sim, que ele também foi desesperadamente apaixonado por mim, que sim, ele também sofreu muito, que doeu muito e que sim, eu apareço nos sonhos dele como ele aparece nos meus e que sim, vivemos aquilo, que aquele amor existiu de fato.

terça-feira, 29 de março de 2011

No caixa

Sempre fiz isso. No supermercado, ao chegar no caixa, investigo, invariavelmente o carrinho dos outros. Me sinto meio mal com isso, como se eu estivesse invadindo a privacidade alheia, mas não consigo. Sempre olho em volta e, enquanto a fila não anda, analiso minuciosamente os artigos escolhidos pelos meus companheiros de compras. Ninguém nunca percebe, acho que sou discreta, mas checo cada detalhe, os produtos escolhidos, as marcas, as quantidades, até a maneira de dispor as compras dentro do carrinho. E fico a tirar conclusões, provavelmente infudadas na sua maioria, sobre quem são aquelas pessoas, o que fazem, com quem vivem, onde moram, o porque daquelas escolhas, o que farão com aquilo tudo. Uma bisbilhotice como qualquer outra, ao que tudo indica inofensiva.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Figurino

Outro dia li a declaração de uma figurinista sobre uma personagem da novela das nove que me chamou a atenção: "ela tem um orçamento, ela repete roupa." Como assim? Só ela? Quem não repete? Que conceito é esse de "não se repetir roupa"? Salvo engano, roupa não é descartável. A gente usa, lava (com cuidado), passa e usa de novo, não? A personagem em questão é, por acaso, uma jovem executiva bem sucedida. É claro que ela tem um orçamento. E é claro que ela repete roupa. Tem cada roupa linda no armário! Por que motivo não iria repetir? Fiquei sem entender o raciocínio da figurinista. Todos nós temos um orçamento. O tamanho ou elasticidade dele varia, é claro, de uma pessoa para a outra mas acho que a maioria esmagadora dos mortais tem um orçamento e, sim, viva, repete roupa. Para mim a questão foi sempre outra, independente do orçamento. Eu sempre adorei roupa. Ter, comprar, ver, namorar, ganhar, combinar, me vestir. Mas o que observei ao longo dos anos é que eu uso sempre as mesmas, as minhas preferidas de cada momento da vida, pelas quais eu tenho carinho, aquelas com as quais eu me visto e me sinto bem, bonita. Então, é claro que sempre repeti roupa feliz da vida não por necessidade mas por prazer.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Gilda

Eu poderia dizer que minha avó foi uma intelectual brilhante e uma das mulheres mais originais e elegantes de que se tem notícia. Mas isso seria cair no lugar comum, chover no molhado, sem nenhuma modéstia.
Pensando nela, que amanhã faria aniversário, algumas coisas me vem de imediato. Há todo um legado que permeia a minha vida e que deve ser a ela atribuído. Penso nela ao me vestir e ao me enfeitar. Lembro dela ao reagir às pessoas e à vida. Ela está sempre presente quando tomo uma chícara de chá, quando passo batom, quando ajeito o meu cabelo, quando visto vermelho. "Vermelho é a mais linda das cores" dizia ela. Minha avó teve a sabedoria de construir uma bela carreira junto com uma família. Escolheu o homem certo, na hora certa. Um talento raro e menosprezado. Teve, com meu avô, um dos casamentos mais plenos de que se tem notícia. Prendada que era, cozinhava, costurava e bordava bem. Nunca comi mousse de chocolate, torta de maçã ou bife iguais aos dela. Os vestidos que tive na infância eram concebidos e executados por ela. Me lembro de alguns até hoje como peças lindas com as quais eu gostaria de vestir a minha filha. Como avó foi sempre uma figura fascinante que me recebia com um carinho contido mas profundo, manifesto nas pequenas coisas do dia a dia. Uma roupa de cama perfumada, um espaço no armário, geléia para a hora do lanche, idas ao cabelereiro, passeios e comprinhas. Entrava-se na sua casa e não se tinha mais vontade de sair. Conversávamos sobre literatura, sobre as minha leituras, sobre a juventude dela perto do primo mais velho e mentor. Seu assunto preferido e recorrente.
Minha avó morou em São Paulo a maior parte da vida. Quando eu nasci, ou logo depois disso, comprou um apartamento no prédio dos meus pais. Conta o meu avô que foi para ficar mais perto da neta.
Já adulta, fui fazer mestrado em São Paulo. Uma vez por semana dormia na casa dos meus avós. Durante um ano e meio corri de cá para lá e de lá para cá, trabalhando e estudando ao mesmo tempo. Vejo a minha avó abrindo a porta do seu apartamento depois das nove da noite com aquele sorriso plácido e acolhedor. Meu avô vinha logo em seguida. Íamos então para a cozinha onde a mesa posta me esperava para jantar junto com eles.
Já bastante doente minha avó conheceu aquele que veio a ser o meu marido. Não era mais possível, naquele momento, manter uma conversa linear com ela mas tenho a certeza de que ela percebeu a visita como deveria pois ela me deu a entender, a seu modo, e dentro das suas limitações, que tinha gostado muito dele.
Passei, sem saber, sua última semana de vida em São Paulo, com ela já no hospital, muito debilitada, muito velhinha, delirando em alguns momentos, mais perto da lucidez em outros. Saí de perto dela no dia 23 de dezembro. Ela se foi no dia 25. No meio da minha tristeza uma coisa me dava conforto. Saber que eu tinha estado com ela durante aqueles últimos dias e acreditar que, de alguma forma, ela havia sentido a minha presença, o meu carinho e o meu amor naquela hora tão difícil quando a vida estava indo embora para ela.
Como acredito que quando morre acaba, lidar com a morte para mim foi sempre muito difícil. Aceitar que alguém que a gente ama acabou é muito duro. Perdi poucos queridos até agora. Uma grande amiga e minha avó foram as perdas que mais senti. Com o tempo aprendi a preencher a saudade com tudo aquilo que fica. Não os colares, vestidos, lenços ou textos mas aquilo que não é tangível. O que dela está em mim e seguirá comigo.
E então, pensando nela posso afirmar, agora sem medo do clichê, que nunca houve uma mulher como Gilda.

Em desvantagem


Num almoço recente de trabalho a primeira pergunta que me foi feita pelo meu interlocutor foi a seguinte: mas então, qual é a diferença de idade entre seus filhos? Atônita com a pergunta, que não tinha, a meu ver, qualquer relação com o objetivo do almoço, respondo reticente: dois anos e sete meses...ao que o meu interlocutor acrescenta: então quer dizer que nos últimos quatro anos você teve dois filhos e ficou um ano de férias? Não, respondo. Depois de dez anos trabalhando para uma mesma empresa eu tive os dois filhos que sempre quis ter e tirei as licenças-maternidade que me cabem de acordo com a lei brasileira. Ao que o meu interlocutor, invencível, retruca: sim, mas você há de convir que a sua produtividade para a empresa foi afetada.
Novo almoço, esse com amigas. Uma delas nos conta uma situação vivida por ela semanas atrás. Mas para ilustrar é preciso fornecer mais alguns elementos. Pensem na pessoa mais estudiosa que vocês conhecem. Pensaram? Pois bem, garanto que a minha amiga é essa pessoa multiplicada por dez. No mínimo. Basta dizer que na adolecência a mãe tinha que brigar com ela para que ela fosse à praia e parasse de estudar. Dito isso, continuo. Essa amiga se propôs a fazer um doutorado em um departamento de determinada universidade que é reconhecidamente um centro de excelência e que atrai alunos de todo o Brasil. Esse curso começa com um nivelamento dos alunos. Nesse momento, a amiga é chamada para uma conversa por um dos coordenadores. Eis que o seu interlocutor indaga se ela tem, efetivamente, o desejo de fazer o curso e se ela acha que vai conseguir concluí-lo. Ela responde que sim, claro que sim. E então ele solta a seguinte pérola: você sabia que na história do nosso curso nós nunca tivemos uma mãe de filhos pequenos como aluna? Nós costumamos ter alunos jovens e do sexo masculino. Pouquíssimas mulheres conseguiram ser aceitas e, quando aceitas, muito poucas conseguiram concluir o nosso curso, agora, mãe de dois filhos pequenos nunca houve. 
Recuperada do meu estado de choque venho pensando nesses dois episódios desde então.
Minha mãe sempre me disse: "minha filha, o mundo é dos homens." Acho que eu nunca entendi muito bem o que ela queria dizer. Até agora. Cresci numa casa com três mulheres e um homem. Na minha casa o mundo sempre foi das mulheres. Venho de uma família onde a maioria esmagadora é de mulheres. Tenho cinco tias e um tio, nove primas e dois primos. Na minha família o mundo sempre foi das mulheres. Mas mãe é fogo e ela tem razão. O mundo é dos homens. E nós não temos saída. Isso é algo inelutável. Estamos sempre, necessariamente, em desvantagem.
Quando jovens e solteiras, somos mães em potencial, um dia podemos ter filhos e isso constitui uma ameaça, quase a promessa de um crime futuro que nos tira pontos diante de oportunidades profissionais. Mais maduras, mães de um filho, continuamos sendo um problema, pois podemos reincidir e cometer um novo crime, o de ter um segundo filho. Tendo tido o segundo, tudo leva a crer que agora seremos vistas sob uma nova perspectiva. Já tivemos os filhos todos que queríamos e agora não representamos mais uma questão para o mercado de trabalho ou para o meio acadêmico. Mas não, agora, e por alguns anos seremos "mães de filhos pequenos" categoria criada pelo phd que intimidou a minha amiga e que se estivesse nos Estados Unidos já estaria sendo processado.


terça-feira, 22 de março de 2011

Ninho

Uma das lembranças que trago comigo da infância é a da minha mãe vindo ao meu quarto antes de dormir. Eu já dormindo mas ainda em estado de vigília, percebia a presença dela sem me mexer. Ela passava a mão pelos meus cabelos, às vezes me dava um beijo e, invariavelmente, cobria meu braço com o lençol. Como que me protegendo. Eu gostava daquilo. Daquela visita, daqueles carinhos. E, por isso, esperava ela sair do quarto para colocar meu bracinho para fora do lençol novamente, do jeito que eu gostava de dormir.
Hoje em dia vou toda noite ao quarto dos meus filhos antes de dormir. Observo eles dormindo, me enterneço com a sua entrega ao sono, com a sua vulnerabilidade. Beijos os dois, cheiro os dois e cubro os dois como minha mãe fazia comigo.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Escrever é preciso

Eu sempre quis escrever. Na verdade, eu sempre escrevi. Para mim escrever é preciso. E sempre foi assim.
Resolvi então me exercitar através desse blog. Tomei coragem e aqui estou eu. Vamos ver que bicho vai dar.